Três horas com o professor Hasumi em um trem, no Japão

Recortes de Película
4 min readJul 23, 2024

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Flor do Equinócio (1958), dir. Yasujirō Ozu

O artigo a seguir é uma tradução do texto “Three Hours with Professor Hasumi on a Train, in Japan”, escrito pelo cineasta Pedro Costa para o livro A Collection of Essays on Shigehiko Hasumi, de Yoko Kudo.

Era uma manhã linda e fria no final de outubro.

O sol brilhava e o céu estava azul na estação de Tóquio. O professor Hasumi, um homem alto vestindo um longo sobretudo, já estava me esperando na plataforma do Shinkansen, com uma pasta de couro marrom bem presa entre as mãos.

Ele tinha um sorriso encantador e misterioso no rosto.

Eu havia lido seu livro sobre Yasujirō Ozu e, por isso, me senti inclinado a gostar do homem. Até imaginei que o conhecia um pouco e, por meio dele, seu país e seus compatriotas. Ele tinha visto alguns dos meus filmes; talvez houvesse uma chance dele sentir alguma simpatia por mim. Mas, acima de tudo, naquele momento, percebi a sorte que tive: nas três horas seguintes, tive o privilégio de ter o professor Hasumi como meu companheiro de viagem. Eu estava à sua mercê, por assim dizer; já havia confiado nele sobre Ozu e agora podia confirmar seu Japão e compará-lo com o meu Japão, que se desenrolava do lado de fora da janela.

À medida que o trem ganhava velocidade, comecei a considerar o que eu chamava em segredo de “paradoxo de Hasumi”. Embora ele seja considerado um escritor muito especial, há algo que realmente o diferencia dos demais: ao adotar uma metodologia relutante, ele possui uma maneira muito diferente de observar o mundo e os seres humanos no cinema; seu relato, sua descrição de um filme, é completamente única e um tanto distinta da maioria dos críticos de cinema.

A força que ele encontra em Ozu, Ford ou Hawks? Uma confiança absoluta no mundo, em nosso mundo, por meio do poder do cinema. Uma convicção.

Poderíamos dizer que Hasumi não escreve do ponto de vista de um crítico; ele escreve do ponto de vista de um cineasta. Em cada texto, sobre qualquer filme, temos a sensação de que ele está falando de “dentro” do filme, não de longe ou de fora.

É um trabalho nosso, de cineasta, que ele realiza quando está pensando e escrevendo sobre um filme.

Para descrever um filme, ele tem de considerar todos os problemas concretos com os quais também lidamos. Seu relato é materialista e preciso: como orientar um ator em um espaço limitado, como acelerar ou desacelerar um determinado gesto ou ação de seu corpo, como lidar, compor ou simplesmente mexer no enquadramento, como equilibrar uma sequência de tensões nervosas contraditórias? Hasumi escreve sobre tudo isso como só um cineasta faria. É provável que ele não concorde, mas a conclusão óbvia é que ele trabalha exatamente como um cineasta.

O professor Hasumi não tem a intenção de revelar nada.

Ele confirma, sustenta; ele é como um companheiro para os filmes que elogia.

A definição de cinema de Jacques Rivette também é a sua: um vínculo entre algo exterior e algo secreto que um gesto inesperado revela sem se explicar.

Toda vez que leio algo de Hasumi, ele nunca deixa de se apegar a esse dom secreto.

Deixando para trás a cidade de Sendai, lembrei-me de que seu livro sobre Ozu é dividido em capítulos ou seções intituladas “comer”, “trocar de roupa”, “ver”, “viver”, “parar”…

Fiquei imaginando o que Roberto Rossellini teria achado disso.

O autor de Índia: Matri Bhumi (1959) costumava dizer que, para fazer um filme, bastava desenhar um diagrama em uma lousa e anotar “comida”, “roupas”, “hábitos domésticos”, “clima”, todos os detalhes que pudesse obter de uma observação séria de uma determinada comunidade ou país. Esse seria o seu roteiro, sem qualquer abstração ou poesia desnecessária, e o filme estaria pronto para ser rodado.

Fazer um filme, escrever sobre um filme.

Eu me perdi nessas reflexões; entre as belas paisagens à minha esquerda e o sereno passageiro à minha frente, entre a minha memória de seus escritos esplêndidos e exatos e a maravilhosa materialidade correspondente do Japão que eu via pelas janelas do trem: camponeses trabalhando nos campos, os telhados das casas antigas, as pequenas vans, a cor das árvores, as pontes sobre os rios, os escritos nas placas…

E nossas três horas passaram rapidamente…

Percebi que havia ficado em silêncio durante a maior parte da viagem…

Por ser um observador tão magistral, o professor Hasumi sem dúvida havia se conformado com minha natureza taciturna e melancólica.

Um pouco envergonhado, desculpei-me por ser um companheiro tão enfadonho.

Com uma voz suave e profunda, ele disse que Mikio Naruse era um homem muito silencioso:

Porque ele tinha a sensação de que o mundo o havia traído”.

Naruse, Ozu, Hasumi: homens que falam baixinho sobre nossas fraquezas.

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